Por Luiz Zanin (CrÃtico de Cine de São Paulo)
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Longa chileno debate “justiça com as próprias mãosâ€
FLORIANÓPOLIS – Cá estou aqui para mais um FAM – Florianópolis Audiovisual Mercosul em sua 18ª edição. É um festival que cumpre papel importante na integração latino-americana. Como se sabe, vivemos de costas para o resto do continente e, eles, de costas para nós. Sentimo-nos mais próximos da Europa e, muito mais, dos Estados Unidos. No cinema, essa forma de alienação é ainda mais perceptÃvel. Por sorte, vários festivais brasileiros – Cine Ceará, Festival Latino-americano de São Paulo, Gramado e, agora, o Cine PE, do Recife, entre outros, têm percebido as vantagens da aproximação cultural com nossos vizinhos. O FAM é um dos pioneiros nessa tentativa de sintonia.
Ontem, no sábado, foi apresentado um dos representantes do Chile, Matar a un Hombre, de Alejandro Fernández Almendras, e já provocou polêmica entre os crÃticos presentes (gente do Uruguai, Argentina, BolÃvia, Brasil e do próprio Chile). Houve quem considerasse a história duvidosa do ponto de vista, digamos, polÃtico. Não é minha opinião.
Vejamos. O personagem principal é Jorge, um guarda florestal diabético, que mora num bairro de periferia. Jorge – e sua famÃlia – são atormentados por um grupo de desordeiros, por um deles em particular, gente de um conjunto habitacional vizinho. Jorge tenta os caminhos legais para se proteger, mas quando estes se revelam falhos, morosos, burocráticos, ele pensa em, digamos, soluções alternativas. Se é que me entendem.
Essa storyline não faz do longa de Almendras um êmulo banal de Desejo de Matar, o apologista fÃlmico da “justiça com as próprias mãosâ€. Pelo contrário. Há todo um cuidado em caracterizar o personagem principal como homem fragilizado, contraditório e com problemas de consciência. O filme põe em foco a questão da violência urbana e de como somos obrigados a lidar com desafios que à s vezes dizem respeito à nossa própria sobrevivência. A esquerda tradicional, como se sabe, sempre teve dificuldade a tratar do problema. Como se dissesse: “o nosso foco único é a justiça social, deixamos o discurso da segurança para a direita.†Esse equÃvoco provocou muita perda de votos e de credibilidade. Afinal, segurança não é uma questão ideológica, mas um direito do cidadão e vazios do Estado tendem a ser preenchidos por aventureiros.
Almendras tem a coragem de tocar nessa questão espinhosa. E também corre o risco de ser mal interpretado por fazê-lo. Cinematograficamente, o filme é muito interessante, despojado, “quase bressonianoâ€, como lembrou alguém. Refere-se ao francês Robert Bresson, o mestre por excelência do despojamento, tanto nas atuações como nas opções narrativas, com a ausência de tons melodramáticos apelativos, uso parcimonioso, ou ausência completa, da música.
Em seus vários segmentos, o FAM apresentará mais de uma centena de filmes, entre longas documentais e de ficção, e curtas-metragens. Além de mesas-redondas, debates e painéis sobre o audiovisual contemporâneo. Estou aqui para participar de um debate: Desafio da crÃtica: as novas linguagens do audiovisual.
Vou relatando à medida em que as coisas forem acontecendo.
‘Manto de Fel’ e a alegoria latino-americana
FLORIANÓPOLIS – Tudo é um tanto vago e nebuloso em El Manto de Hiel (O Manto de Fel), filme argentino de Gustavo Corrado apresentado ontem na Mostra de Longas Mercosul, seção do FAM. Um homem anda com seu carro (uma BMW) pelo deserto e para por falta de combustÃvel. Tem de se socorrer num estranho povoado habitado por gente velha, com exceção de uma moça e sua filha pequena.
A ideia do diretor é nos imergir numa sensação permanente de estranheza. O homem pede ajuda a dois mecânicos (mas seriam mesmo mecânicos?) enquanto tenta buscar hospedagem e comida. Logo na chegada, o fora pedir uma informação à moça e recebera uma bofetada como resposta. Há um senhor que tenta afinar um piano caindo aos pedaços e outros que passam o tempo a rir e articular frases misteriosas. Um segredo parece pairar acima de todos eles. Tudo ali parece caindo de podre, das paredes que desmoronam às relações entre as pessoas.
Bem, no princÃpio temos aquela impressão comum de que existe uma única pessoa sã – o viajante – e todos os outros são loucos. É a sensação do pesadelo. Falamos alguma coisa que parece bem sensata e os outros não entendem. Formulamos pedidos razoáveis e ninguém atende. Tentamos sair de cena, ir embora, e não conseguimos. É como se procurássemos nos mover num universo pastoso, através de uma geleia que impedisse nossos gestos e deslocamentos. Claro, nesse ambiente há um toque latino-americano de realismo mágico à la GarcÃa Márquez, ou a estranheza completa do Rulfo de Pedro Páramo. É, de fato, como se o personagem ingressasse num território dos mortos e dali não conseguisse regressar. Depois, a própria pessoa que parecia sã resolve ingressar na lógica do lugar.
É preciso dizer também que o diretor logra colocar esse tipo de sensação não apenas através de diálogos, mas pelas ferramentas do dispositivo cinematográfico. Escolhe uma locação ideal, um ponto perdido no meio do deserto, construções em ruÃnas, piso de chão, um colorido terroso que diz muito do que está acontecendo. A par dessas qualidade, o filme se ressente do ambiente um tanto abstrato para se comunicar com mais facilidade com o público. O que existe por trás? Quem assistir ao filme verá que as alusões polÃticas não tardam em aparecer e têm a ver com a ditadura e a questão dos desaparecidos, ou assim parece.
Claro, a alegoria (pois é disso que se trata) tem lá sua força. Mostrada, aliás, desde os filmes realizados sob censura, quando era preciso falar de alguma coisa querendo-se falar de outra. Este deslocamento é uma das funções do discurso alegórico que, no entanto, paga seu preço quando em terreno de uma arte tão diretamente vinculada ao realismo como é o cinema. Não estou defendendo uma exclusividade realista, nem afirmando que o cinema não se pode mover no mundo mágico, alegórico, fantástico etc. A própria diversidade da produção demonstra que ele pode se movimentar em qualquer gênero. Mas o discurso da alegoria cobra o seu pedágio em descrença. A cumplicidade do público tem de ser conquistada a cada passo. E isso não é fácil.
Curtas. Nos curtas, poucos destaques a não ser de filmes já exibidos em outros festivais, como Acalanto, bonita história de uma mulher analfabeta (Lea Silva) que pede a um homem (Luiz Carlos Vasconcellos) para que leia seguidamente uma carta enviada pelo filho distante há mais de dez anos. Filme de diálogo e também da imagem, dirigido por Arturo Saboia (Maranhão).
Tem seu encanto também Os Irmãos Mai, de Thais Fujinaga, sobre os irmãos chineses que deambulam pelo centro de São Paulo em busca de um presente para a avó. Os mistérios, e os encantos, da cidade grande e multicultural pelos olhos de dois meninos que representam o que São Paulo tem de melhor, a diversidade cultural.
Entre os novos, O Tempo que Leva, de CÃntia Domit Bittar (Santa Catarina), aposta no clima apocalÃptico. O calor é insuportável, as ruas estão desertas as casas em ruÃnas e o bem mais precioso da personagem vivida por Jamila (Mayana Neiva) é um velho ventilador. Quando o aparelho pifa, ela vai pedir ajuda a um técnico meio maluquete interpretado por Ivo Müller. Tem seu clima, quero dizer, o filme.
No mais, o festival, apesar do mau tempo em Florianópolis, do frio e da chuva, tem seguido seu caminho muito bem. As sessões, realizadas numa bela sala, o Auditório Garapuvu, da Universidade Federal de Santa Catarina, têm estado lotadas, ao menos na programação da noite. O ambiente é legal, há shows musicais no intervalo das sessões e o público é predominantemente jovem e universitário. Isso faz bem ao cinema, em especial ao latino-americano, que não encontra lugar no circuito comercial.
A visão feminina e a sutileza uruguaia
FLORIANÓPOLIS – Tão Longe É Aqui é o tÃtulo do documentário de Eliza Capai apresentado ontem no FAM – o Florianópolis Audiovisual Mercosul 2014. Faz uma espécie de sÃntese de duas vertentes documentais. Por um lado, sai à descoberta de outra realidade – no caso a africana, estranha à diretora e à maior parte de nós; por outro, insere esse ato de conhecimento a uma outra esfera, a da confissão pessoal.
Desse modo, ficamos sabendo que é uma mulher em crise a que sai em viagem, tanto para conhecer outros mundos como para descobrir-se. A voz em off fala do que vê e registra em imagens, mas evoca um relacionamento frustrado e dirige-se a uma filha, real ou sonhada.
E é em busca de uma dimensão especÃfica da realidade africana que sai Eliza Capai – a da condição feminina. Mulher descobrindo mulher. Viajando por Cabo Verde, Marrocos, Mali e Ãfrica do Sul ela ouve, vê e comenta a experiência feminina nesses paÃses. Que, de modo geral, é experiência de sofrimento, em especial onde se praticam a mutilação genital (eufemisticamente chamada de circuncisão feminina) e a poligamia. No entanto, alguns depoimentos surpreendem por sua lucidez e articulação.
O filme revela o desejo honesto de compreender o Outro, ou melhor, a Outra. Uma dimensão feminina por vezes muito distante da experiência ocidental. Por outro lado, a autorreferência, que não parece narcÃsica, dá uma dimensão mais aproximada a tudo o que a diretora testemunha. Nao existe distanciamento entre sujeito e objeto. Nao é alguém que observa, de maneira etnocêntrica. Não se trata de um um universo alheio, por mais estranheza que ele possa trazer. No fundo, a humanidade é um todo, em suas diferenças, em sua assimetria, mesmo em suas práticas à s vezes incompreensÃveis e inaceitáveis, mesmo que culturalmente enraizadas. Bonito filme.
Na mostra de longas ficcionais, tivemos o reencontro com Rincón de Darwin, de Diego Fernández Pujol, que já havÃamos visto no Cine Ceará do ano passado. De passagem: rever filme bom é muito enriquecedor. Como já conhecemos o enredo, desfecho e personagens, prestamos mais atenção nos detalhes. Já rever filme ruim parece uma tortura. Talvez pelos mesmos motivos. Isso para dizer que Rincón de Darwin fica ainda melhor ainda quando assistido pela segunda vez.
Trata-se de um interessante road movie construÃdo à maneira uruguaia, isto é, sutil, quase minimalista em sua maneira de ser. São três os personagens que se põem na estrada, a bordo de uma velha camionete caindo aos pedaços. Gaston, um rapaz fascinado por tecnologia que acabou de terminar um noivado. Americo, um contador mais velho, preocupado com o casamento da filha, e o despachado e malandro motorista Beto.
O objetivo da viagem é visitar uma propriedade no interior do Uruguai, herdada por Gaston com a morte do avô. O contador vai com ele para avaliá-la, pois será colocada à venda. E Beto é o chofer, um transgressor que colocará pimenta no universo desencantado de Americo e no desesperançado de Gaston. Deve-se dizer também que Beto é uma figura pÃcara, no âmbito da grande tradição espanhola do gênero, que nos legou, por exemplo, o Lazarillo de Tormes. Quer levar vantagem em tudo, mas não é má pessoa. Ao fundo do trajeto, ouve-se por vezes a narração (em inglês) de passagens do diário de Charles Darwin em sua viagem que redundou em A Origem das Espécies, o tratado sobre a teoria da evolução. O local onde se situa a propriedade de Gaston chama-se Rincón de Darwin porque o biólogo passou por ali e colheu informações para a construção da sua teoria.
O filme, como outros da leva minimalista uruguaia, joga no espaço do campo reservado à sutileza e não entrega tudo de bandeja ao espectador. Se muita coisa se expõe à luz, outro tanto permanece na sombra, o que é uma forma de respeito ao espectador. O implÃcito joga um papel importante no processo de formação de sentido pela plateia, o que é quase sistematicamente ignorado pelos cineastas brasileiros.
Como toda viagem arquetÃpica esta também é transformadora, mas dentro das limitações humanas. Não se trata tanto de mudar radicalmente a natureza de três pessoas por aquilo que passaram juntas na estrada durante dois ou três dias. Mas, quando experiências, mesmo que pequenas, são assimiladas, elas permitem, talvez, um certo deslocamento de perspectiva na assimilação do mundo. É o que, modestamente, nos oferece Rincón de Darwin, mais um pequeno grande filme vindo do nosso vizinho do Sul, o paÃs em que talvez se escrevam os melhores diálogos da cinematografia latino-americana. Deve ter algo a ver com o hábito de leitura do seu povo.
La Paz e a busca da quietude
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FLORIANÓPOLIS – La Paz é a grande cidade boliviana do altiplano, a maior cidade do paÃs andino. O diretor argentino Santiago Loza usa a associação óbvia do topônimo com o sentimento a que aspira o personagem do seu filme, assim intitulado. Todos queremos paz, mas talvez o jovem Liso a necessite mais do que os outros.
No começo, vemos o rapaz saindo de uma internação psiquiátrica. Não conhecemos direito o motivo que o levou até lá. Sabemos, no entanto, que pertence a uma famÃlia rica, da burguesia de Buenos Aires. O pai possui uma indústria, a mãe é uma dondoca de meia idade, conservada em Botox. Eles têm uma casa com piscina e uma empregada boliviana, Sonia. Curiosamente, é a essa moça humilde que o jovem se apega.
La Paz é um filme de silêncios, de muitos espaços em branco na história. Vemos o rapaz tentando, seu sucesso, reatar relacionamentos amorosos anteriores à sua internação. Uma das moças lhe diz: “Mas você tem consciência do que fez comigo, não tem?†Não sabemos do que se trata. E não sabermos não faz falta alguma para imergirmos na história.
O que deseja Liso? Ele não deseja nada. É o que diz à mãe, ao pai, a todos. Só quer paz. E ter um filho. Mas como ter um filho na sua situação?, lhe pergunta o pai, com pouco tato. É só isso. Ele gosta de crianças. E também de sua velha avó, que carrega na motocicletarecebida de presente da mãe. A moto não é seu único brinquedo perigoso. Ficamos surpresos ao ver uma pessoa que fora internada treinando num estante de tiro. Mas não sabemos se sua internação tem algo a ver com violência.
De certa forma, La Paz é uma lição de como se constrói uma narrativa com poucos elementos, sem qualquer necessidade de dizer tudo. Aliás, esse desejo de preencher todos os espaços ficcionais talvez seja um dos principais defeitos dos roteiros brasileiros, e dos filmes de modo geral. Essa vontade de tudo dizer supõe que se algo ficar no ar o espectador não compreenderá ou não gostará da história. O resultado são obras óbvias, que deixam pouco ou nenhum espaço para que o espectador ponha algo de seu na fruição da narrativa. Para que a fábula fale por nós, como preconizavam os antigos (Horácio), é preciso que ela também mantenha pontos de respiro, nos quais possamos projetarmo-nos e imaginarmos que aquilo tudo bem poderia estar acontecendo conosco.
La Paz, tanto por seus personagens como por seu modo de construção, é uma pequena epifania.
Obs. Agora mudo o chip e me mando para Curitiba, para outro festival, O Olhar de Cinema, que começa hoje à noite com apresentação de um clássico, Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, em cópia restaurada, talvez a grande fábula de humor negro sobre a paranóia militarista.